Texto de autoria de Rodrigo Toscano de Brito e Alexandre Junqueira Gomide
1. Notas Introdutórias
Em sua obra clássica a respeito do direito das coisas, ao tratar das características fundamentais do direito de propriedade, Lafayette Pereira1, nos idos anos de 1943, asseverou que tal direito “é ilimitado e como tal inclui em si o direito de praticar sobre a coisa todos os atos que são compatíveis com as leis da natureza”.
O caráter “ilimitado2” do direito de propriedade era conferido no art. 527, do Código Civil de 1916, ao determinar que “o domínio presume-se exclusivo e ilimitado, até prova em contrário”3.
Contudo, com o passar dos anos, o exercício ilimitado da propriedade passou a sofrer restrições. Atente-se que o art. 1.231, do atual Código Civil, não mais estabelece que a propriedade se presume ilimitada, mas, sim, “plena e exclusiva”. Passo importante nesse sentido certamente foi a promulgação da Constituição Federal de 1988 que dispôs, expressamente no art. 5º, inciso XXIII, a determinação de a propriedade atender a sua função social4.
De todo modo, embora tenha sofrido restrições em sua forma de exercício, não se perca de vista que desde o Código Civil revogado5 até o vigente6, o proprietário continua tendo como principais atributos o direito de usar, gozar e dispor da coisa.
Os tempos modernos requerem análise atenta a respeito dos atributos do direito de propriedade e suas limitações, nomeadamente no exercício do direito de usar e gozar da coisa. Destaque-se que as limitações ao direito de propriedade podem ser ainda mais frequentes no âmbito do condomínio edilício, a considerar que a convenção condominial pode estabelecer certas limitações não previstas no texto legal.
Não é objetivo do presente artigo tratar de limitações ao direito de propriedade já conhecidas e tratadas pela doutrina7 e jurisprudência, a exemplo disso, (i) limitação para inadmitir animais domésticos; (ii) limitação de uso ao condômino antissocial; (iii) limitação para cessão do uso do imóvel via aplicativos de locação/hospedagem de curta temporada; (iv) limitação para locação da unidade à república de estudante; (v) limitação de serviços essenciais ao condômino inadimplente.
O objetivo do presente artigo é tratar do impacto imediato da COVID-19 nos condomínios edilícios e algumas questões controversas.
2. O Coronavírus e os Impactos Imediatos À Vida Condominial
Diante do número expressivo de informações que estamos recebendo sobre o Coronavírus (COVID-19), já se sabe que os efeitos da doença serão devastadores – seja na saúde dos brasileiros, seja no tocante aos impactos na economia ou, ainda, no que diz respeito ao relacionamento social.
A bem da verdade é que na data de fechamento deste artigo, sequer poderíamos fazer previsões seguras a respeito das dimensões que o vírus ainda poderá causar à vida das pessoas. Também no Direito, a COVID-19 trará consequências das mais diversas. O Direito Condominial, por si só, já é uma das áreas mais controversas na doutrina e jurisprudência. O vírus poderá ampliar as discussões envolvendo a matéria condominial.
Analisemos.
3. Impactos nas Assembleias e Utilização de Meios Virtuais de Deliberação
O condomínio edilício não é administrado pelo síndico, isoladamente. Isso porque o condomínio deve obedecer às normativas advindas da assembleia de condôminos, como regra geral. As decisões no âmbito do condomínio edilício são, portanto, assembleares, ou seja, dependem da assembleia de condôminos. O síndico executa as determinações da assembleia e deve seguir as regras de convocação previstas na convenção do condomínio ou, na sua falta, na lei civil.
Diz-se isso para deixar esclarecido que o síndico não pode, por si só, determinar atos que não estejam previstos nas deliberações assembleares, nem na convenção. De toda forma, é importante ressalvar que cada caso deve ser analisado à luz da convenção específica, especialmente no capítulo que versa sobre as atribuições do síndico, embora existam regras gerais que devam ser observadas.
Diante desses aspectos e das questões relativas à pandemia decorrente do coronavírus, os síndicos, ainda que estejam agindo de boa-fé e com espírito comunitário ao proibir o uso e fruição de determinadas áreas comuns, haverão de observar as regras gerais dispostas na lei civil. Uma delas é a convocação de assembleia geral extraordinária, de caráter emergencial, diante das questões especiais que envolvem a prevenção de contaminação da COVID-19, para que a assembleia possa deliberar quais medidas de proteção à saúde dos moradores devem ser tomadas pelo condomínio.
Parece-nos que o síndico só estaria desobrigado de convocar a assembleia se a questão envolver a necessidade de uma decisão com alto grau de urgência. Caso contrário, ainda que de maneira excepcional, é obrigado a convocá-la, podendo, em razão da necessidade de decisão urgente, desconsiderar regras relativas ao prazo mínimo de convocação, bem como questões burocráticas. Portanto, quanto ao modo de convocação, a assembleia pode ser realizada por meios eletrônicos. Embora a convocação possa ser flexibilizada, não pode ser desconsiderada.
De igual modo, em razão da proibição pública de aglomerações e reuniões, conforme for a quantidade de moradores, a realização da assembleia pode utilizar-se de mecanismos eletrônicos, hoje de facílimo acesso, tais como WhatsApp, Zoom, Skype, etc. Observem que tudo isso se afirma considerando situações extremas, até porque em muitas localidades brasileiras, ainda é possível realizar as reuniões conforme estabelecido na convenção, tendo em vista que sequer há casos notificados de infecção pela COVID-19. Mesmo assim, por cautela e em razão da urgência eventual, é possível a realização de reuniões por meios eletrônicos, com a ressalva da excepcionalidade da forma, depois referendados durante a reunião.
Apesar de considerar opiniões importantes em sentido contrário8, ou seja, por parte daqueles que pensam não ser necessária a convocação da assembleia de condôminos, vale observar que existem decisões por parte de síndicos que são razoáveis; outras, não. Mais adiante, vamos observar neste artigo que já existem casos em que o síndico determinou unilateralmente a proibição de passagem de moradores que são profissionais da área de saúde, tais como médicos, enfermeiros, dentistas. O exemplo serve para se observar que, nem o síndico pode determinar essa limitação por ato isolado, nem mesmo a assembleia o pode, mas a assembleia deve ser convocada (pelos meios eletrônicos, como já se disse para evitar contatos e aglomerações) para decidir quais os limites serão impostos à propriedade condominial.
Deve-se levar em conta que os problemas condominiais que surgem, diante da excepcionalidade provocada pela pandemia da COVID-19, não encontram soluções já postas no Código Civil. E aqui há uma discussão realmente interessante. Na regra geral do Código Civil, as decisões no âmbito do condomínio edilício são assembleares e, parece-nos que, para evitar decisões autoritárias e totalmente ilegais por parte de alguns síndicos, deve continuar sendo essa a regra. Não que se deva passar necessariamente pela burocracia regular e recomendável das assembleias em períodos normais, mas há necessidade de se certificar que todos tenham tomado conhecimento da notificação (hoje isso é facilmente controlado mesmo em aplicativos simples, como Whatsapp) e que haja a deliberação de como limitar o uso da propriedade condominial. A vida em condomínio, ainda que em períodos fora do comum, como o que vivemos, deve preservar decisões comunitárias, como é o grande sentido da norma.
É interessante o esforço interpretativo de que o síndico pode determinar limitações por ato unilateral dele a partir da regra do art. 1.348, V, do Código Civil, mas observem a regra ali posta: “Art. 1.348. Compete ao síndico: (…) V – diligenciar a conservação e a guarda das partes comuns”. O dispositivo diz respeito à conservação da coisa em si, não propriamente ao uso, nem à possibilidade de se criar limitação ao uso, um dos elementos relevantes do direito de propriedade.
A estipulação da limitação ao uso das áreas condominiais é privativa da assembleia, que deve se reunir, excepcionalmente, por videoconferência, deliberar e votar pelos meios possíveis, evitando contato e aglomerações para tanto.
É importante observar que alguns síndicos têm tomado medidas razoáveis de prevenção à contaminação, criando algumas limitações ao uso da propriedade condominial, sem criar discussões por parte dos demais condôminos. Nesse caso, parece muito interessante a solução interpretativa dada por Rubens Carmo Elias Filho e Rodrigo Karpat, no parecer já referenciado aqui, dado no âmbito da comissão de direito imobiliário da OAB-SP. No citado parecer, sugere-se a aplicação analógica do art. 1.324, do Código Civil, que assim prevê: “Art. 1.324. O condômino que administrar sem oposição dos outros presume-se representante comum”.
Observem que o artigo está contido no regramento do condomínio voluntário e, em sua interpretação finalística de fato: caso não haja oposição dos demais, presume-se a aceitação. É o que está acontecendo na maior parte dos casos brasileiros, sem gerar a necessidade da assembleia previamente. Há uma consciência geral da gravidade do problema trazido pela COVID-19 e, em boa parte dos casos, os síndicos criaram soluções limitativas que agradaram a todos. Nesse caso, a ausência da assembleia não macula a decisão isolada do síndico, que acaba sendo referendada tacitamente pelos demais condôminos.
Por outro lado, decisões como proibir ingresso ou passagem por áreas comuns por parte de profissionais da área de saúde ou outras limitações severas ao direito de propriedade ou mesmo à pessoa, como, por exemplo, exigir que o condômino faça medição da sua temperatura corporal, parece-nos que devem observar a regra geral da natureza assemblear.
Claro que, repita-se, evitando a aglomeração de condôminos, daí a necessidade de se usar os mecanismos de videoconferência, sempre na certeza de que todos foram avisados para deliberar, seja por e-mail, telefone, mensagens eletrônicas, interfone, ou qualquer outro meio inequívoco. Numa eventual discussão concreta, em vista da natureza comunitária do condomínio, a deliberação deve ser em assembleia, em conjunto, em grupo de interessados, mas nunca monocrática do síndico. Um só não pode limitar direito dos demais condôminos.
Também é bastante claro que se a circunstância não permitir, por razões que fogem da possibilidade de realização absoluta da assembleia, o síndico decidirá isoladamente e pode referendar sua decisão depois em assembleia virtual. Mas esta não pode ser a regra durante um, dois, três meses de quarentena, sobretudo na existência de síndicos pouco ou quase nada razoáveis, como em alguns casos.
4. Limitações de Uso das Áreas Comuns
A mais relevante das batalhas para enfrentarmos a pandemia é a reclusão das pessoas em suas residências. Embora o afastamento interpessoal completo seja desejável, diversas situações nos impedem de nos mantermos absolutamente afastados uns dos outros. Basta pensarmos que, embora reclusos em nossas residências, continuamos dependendo de visitas aos supermercados, farmácias, visita a um familiar que precisa de socorro, dentre outras situações.
Nos condomínios edilícios, da mesma forma, sempre que um condômino deixa a sua unidade autônoma, regra geral, precisará acessar o elevador, transitar pelas áreas comuns até que consiga acessar a rua.
Limitar, portanto, o direito de transitar nas áreas comuns não se mostra medida razoável ou possível. Evidentemente que é possível ao condomínio limitar o trânsito de pessoas, mas não impedir que as pessoas acessem suas unidades autônomas.
Mas ainda no que diz respeito ao trânsito de pessoas, indaga-se a possibilidade de o condomínio, por exemplo, limitar o direito de uso para profissionais da área de saúde, ou seja, pessoas que certamente possuem maior risco de contágio da doença. É possível proibir, por exemplo, que o condômino médico ou enfermeiro que, conforme a especialidade, esteja no grupo de risco profissional, acesse sua unidade utilizando-se do elevador e das demais áreas comuns do prédio?
Evidentemente o condômino-médico não pode ser impedido de transitar pelas áreas comuns do prédio que dão acesso ao elevador, partindo do portão ou garagem. Além de tal medida cercear demasiadamente o direito de uso da propriedade, também fere outros direitos fundamentais. Além disso, em tempos de elevado grau de solidariedade, não se espera que os condomínios limitem que profissionais da saúde, atualmente responsáveis por salvar milhares de vidas (colocando a sua própria em risco), tenham tamanha restrição ao direito de propriedade.
Assim, não há licitude, muito menos razoabilidade, obrigar, por exemplo, médico de sessenta e cinco anos acessar sua unidade no trigésimo andar pelas escadas, saindo ou regressando à sua unidade, após um dia de trabalho, ainda que esteja em serviço específico de atendimento a doentes da COVID-19.
Sem prejuízo, é possível, por medida de segurança, que haja determinação para que os condôminos sujeitos aos maiores riscos de contágio (médicos, enfermeiros, dentistas, idosos, dentre outros) façam uso individual do elevador, proibindo que outro morador compartilhe o mesmo espaço.
As questões de maior controvérsia, contudo, dizem respeito à limitação de acesso de áreas não essenciais, tais como piscina, academia, quadras esportivas, salão de festas, espaço “kids”, salas de cinemas, entre outras áreas comuns dessa natureza.
Quando do início da doença, enquanto ainda não se falava em pandemia, poderíamos entender ilícita a vedação total de uso de tais áreas comuns de lazer. Contudo, com o avançar da doença, as escolas, academias, clubes esportivos, cinemas, teatros, foram totalmente proibidos de funcionar9. A princípio, parece-nos, portanto, legítima (senão recomendável) a possibilidade de restrição das áreas comuns de lazer por tempo indeterminado, até que as autoridades médicas digam o contrário.
Contudo, reconheça-se que, em tempos de reclusão compulsória, muitas famílias terão dificuldades de ficar confinadas em suas unidades autônomas, muitas com cinco ou seis membros familiares. A situação é ainda mais crítica quando imaginamos a presença de crianças em apartamentos.
Assim, o condomínio poderá, em situações bastante específicas, controlar o uso de algumas áreas, estabelecendo, por exemplo, horários de reserva de uso individual por parte do condômino ou para uso do seu núcleo familiar, com quem já convive em sua unidade.
Nessa mesma linha de raciocínio, o uso da academia pode, eventualmente, ser permitido com grandes limitações, por exemplo, a um morador por vez, em horário específico, previamente agendado e reservado, com a obrigação imposta ao condômino de comunicar ao condomínio o fim do período de uso para que haja uma limpeza específica da área, com o fito de evitar a contaminação dos objetos usados e pôr em risco a saúde dos demais moradores.
A questão é distinta quanto à possibilidade de realização de festas e recepções no ambiente condominial e uso da piscina. Aqui a ponderação entre os direitos fundamentais de propriedade e à saúde da coletividade é relevante.
É sabido que a aglomeração em festas com grande concentração de pessoas durante o período de quarentena põe em risco a saúde da coletividade de modo mais explícito, considerando que os números demonstram que a reunião de pessoas foi fator facilitador da propagação do vírus até agora. Nessa ponderação, é recomendável a proibição completa de festas nas áreas comuns e na própria unidade autônoma, considerando que a festa aumenta o fluxo de pessoas no ambiente condominial.
O uso da piscina é também um aspecto que pode levar a decisões polêmicas por parte do condomínio. Abstraindo-se aqui do aspecto científico de ser ou não possível a transmissão do vírus pelo simples uso da piscina, ainda que isoladamente, pensamos que a solução pode ser a mesma sugerida para outros equipamentos de uso comum, salvo a hipótese de comprovação de que a piscina não é um facilitador de transmissão da COVID-19. Vale dizer, poderá o condomínio limitar o uso, permitindo, eventualmente, o uso individual, com hora marcada e reservada, afastando de riscos de contaminação os demais condôminos.
A visita de pessoas ao condomínio também pode ser limitada, estabelecendo-se, por exemplo, a impossibilidade de visita de pessoas para a realização de festas, ou questões que não sejam eminentemente essenciais.
Os corretores de imóveis, da mesma forma, ainda que autorizados pelos proprietários, também poderão sofrer limitação para acessarem o condomínio com terceiros interessados na comercialização de unidades autônomas. Embora essa medida seja bastante prejudicial ao proprietário do imóvel e, naturalmente, aos profissionais da intermediação imobiliária, pensamos que tal restrição protege a saúde dos condôminos e das demais pessoas que já trabalham no ambiente condominial.
Inobstante a discussão a respeito da possibilidade ou não de ser limitada a locação por curta temporada, também nos parece lícito, nesse momento, impedir o uso das unidades por inquilinos dessa natureza.
As obras nas áreas comuns ou mesmo nas unidades autônomas também devem ser suspensas. Somente devem prosseguir serviços comprovadamente emergenciais, cuja suspensão poderá acarretar maiores riscos aos condôminos (obras estruturais, por exemplo), ou para realização de serviços emergenciais, tais como, a manutenção de um vazamento de água em determinada unidade. Mesmo assim, o condomínio pode criar restrições, como uso de proteções adequadas, horário limitado e quantidade máxima de pessoas, sempre no intuito de evitar aglomerações.
Para qualquer desses atos de proibição ou limitação nas áreas comuns, a competência decisória é assemblear. No entanto, a considerar a urgência em algumas ações, o síndico, havendo fundamento jurídico, conjuntamente com o corpo diretivo, pode adotar medidas antes da assembleia, que visem resguardar a saúde dos condôminos. Tais medidas, posteriormente, deverão necessariamente ser ratificadas em assembleia.
Por último, existe outra questão que tem suscitado algumas dúvidas e que perpassa também por direitos da personalidade. Trata-se da discussão em torno de se poder, ou não, requerer aos condôminos e terceiros realizarem o exame para aferir a temperatura corporal. A questão é complexa: pode-se ou não impor a pessoa a realizar o teste de temperatura para ingressar no condomínio?
Parece-nos que a solução está no espelhamento do que ocorre no ambiente público. Vale dizer, é normal que em aeroportos, rodoviárias, e outros ambientes públicos, haja barreiras sanitárias para se aferir a temperatura do corpo da pessoa, em função do interesse da coletividade. Assim, na ponderação entre o direito de a pessoa não ser obrigada a se submeter a tal exame e à saúde da coletividade, deve prevalecer o interesse da coletividade de condôminos.
De qualquer forma, a aferição da temperatura deve ser realizada de modo a resguardar a intimidade, segurança e saúde do condômino ou terceiro. Assim, é possível, por exemplo, a utilização, de termômetro infravermelho, que permite a aferição, sem tocar na pessoa.
Na hipótese de o condômino negar-se a realizar o exame, as restrições e limitações de uso da área comum podem ser ampliadas. Se houver provas suficientes que o condômino contaminado não atende às determinações de limitações, colocando em risco a vida dos demais moradores, medida judicial restritiva pode ser solicitada.
Havendo a comprovação de sintomas da COVID-19, o condomínio, embora não possa proibir o acesso à residência do condômino (sobretudo porque o morador pode estar retornando do hospital para quarentena, por exemplo), pode avançar nas limitações de uso da propriedade, sob pena de multa por descumprimento. Imprescindível, contudo, resguardar o direito de privacidade do condômino, não sendo permitido ao condomínio revelar a identidade do infectado.
5. NOTAS CONCLUSIVAS
O tema aqui enfrentado é polêmico em razão do trânsito necessário por vários pontos relacionados ao conflito de direito fundamentais como a vida, a saúde, a propriedade e a liberdade, de forma que não restam dúvidas que qualquer decisão a que se chegue no âmbito do condomínio, dependerá também de análise tópica e concreta.
De toda forma, é importante destacar que os assuntos relacionados à prevenção da CONVID-19 devem ser levados muito a sério por toda a sociedade, devendo cada um tomar seus cuidados preventivos.
Ademais, é dever do condômino não fazer uso da edificação de modo a prejudicar a segurança dos demais moradores (art. 1.336, IV, Código Civil). O condômino que teve contato direto ou indireto com qualquer pessoa infectada pelo vírus deve restringir ao máximo o uso das áreas comuns e, nesse caso, certamente não utilizar as áreas comuns de lazer. Para os condôminos que possuem os sintomas da COVID-19, recomenda-se quarentena domiciliar, nos termos das determinações do Ministério da Saúde. Essa obrigação decorre não apenas de recomendações sanitária, mas também dos deveres laterais da boa-fé objetiva.
Confirmada a doença, sugere-se que o condômino leve tal informação para o síndico que, sem identificar o morador, deve fazer um comunicado sobre a confirmação de condômino identificado pelo vírus, de modo a restringir ainda mais o uso da edificação e aumentar as cautelas para evitar a transmissão.
É tempo de solidariedade, renúncia e limitações. A sociedade poderá dar o seu exemplo e, em especial, aqueles que vivem em condomínio.
Toscano de Brito é doutor e mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Professor de Direito Civil da UFPB e da UNIESP, nos cursos de graduação e pós-graduação. Diretor Regional do IBRADIM-PB. Advogado.
Alexandre Junqueira Gomide é mestre e doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Especialista e Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em Portugal. Colaborador do Blog Civil & Imobiliário (www.civileimobiliario.com.br). Fundador e Diretor Estadual (SP) do IBRADIM – Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário. Advogado.
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1 PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das coisas. 5. ed. vol. I. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1943. p. 99.
2 Segundo José de Oliveira Ascensão, a expressão ‘propriedade absoluta’ é equívoca, mas queria se referir à propriedade ilimitada. Criticando o caráter ilimitado, Ascensão afirma que “quando se fala de propriedade absoluta pensa-se normalmente no ius utendi, fruendi et abutendi, que se reporta ao Direito Romano. A este atribui a paternidade de todas as manifestações que esta concepção viria a ter. Possivelmente com injustiça. Basta pensar que o direito inglês foi pouco influenciado pelo direito romano, e todavia em país algum a titularidade dos bens assumiu um aspecto tão acentuadamente egoísta. Por exemplo, ainda hoje existem na Inglaterra os ‘muros da inveja’: um sujeito pode fazer erguer um muro unicamente com a finalidade de privar o seu vizinho de visitas ou luz, em que a este assista qualquer recurso para se opor ao acto emulativo”. ASCENSÃO, José de Oliveira. Direitos Reais. 5. ed. Coimbra: Ed. Coimbra, 2000. p. 139.
3 Em sentido próximo, o art. 2.170º, do Código Civil Português de 1867 declarava: “O direito de propriedade, e cada um dos direitos especiais que esse direito abrange não têm outros limites senão aqueles que lhe forem assinados pela natureza das coisas, por vontade do proprietário ou por disposição expressa da lei”.
4 Parece-nos adequado o conceito de função social da propriedade conferido por Luciano Camargo Penteado. Para o autor, “a função social da propriedade é uma cláusula geral que onera as situações jurídicas de direito das coisas, impondo ao titular da mesma o dever de atuar: (i) de modo geral, sem ofender fins da comunidade política em que está estabelecido, determinando diferentes obrigações, sujeições e ônus, como situações jurídicas cujo conteúdo é o respeito ao meio ambiente sadio e equilibrado, o patrimônio histórico e cultural, bem como o atender a certos fins transindividuais, como a paz; (ii) de modo específico, quando titular de bens de produção, otimizando sua capacidade geradora, a fim de que compartilhe o benefício com a coletividade em que se insere. Em face disto, a função social da propriedade tem duas claras funções: 1) criar um espaço geral de licitude na atuação dos direitos sobre bens corpóreos e, ao mesmo tempo, programaticamente, 2) implementar políticas públicas no sentido de produtividade, para permitir um efeito redistributivo da propriedade para a comunidade em que o titular do direito se insere. (PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 222).
5 Código Civil de 1916: Art. 524. A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reave-los do poder de quem quer que injustamente os possua.
6 Código Civil de 2002: Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
7 Para tanto, verificar GOMIDE, Alexandre Junqueira. Novas limitações aos direitos de uso e fruição em condomínios edilícios. Publicado em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-edilicias/305667/novas-limitacoes-aos-direitos-de-uso-e-fruicao-em-condominios-edilicios. Acesso em 25/03/2020.
8 Cf. ELIAS FILHO, Rubens Carmo e KARPAT, Rodrigo. Parecer sobre fechamento de áreas comuns e cancelamento de assembleias – OAB-SP. Publicado em: http://www.oabsp.org.br/comissoes2010/direito-imobiliario/noticias/parecer-sobre-fechamento-de-areas-comuns-e-cancelamento-de-assembleias. Acesso em 25. mar. 2020.
9 Em São Paulo, o Decreto Municipal nº 59.283 de 16 de março de 2020 suspende o atendimento presencial ao público em estabelecimentos comerciais e o funcionamento de casas noturnas e outras voltados à realização de festas e eventos ou recepções.
Fonte: Migalhas